sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O outono do patriarca


O outono do patriarca

I


Ainda me lembro daquele 1982, quando lutávamos para impor uma derrota eleitoral acachapante ao regime militar.


Queríamos gritar aos donos do poder, através dos parcos meios legais que nos restaram, que não precisávamos daquela tutela. 


Que queríamos pensar e agir – e até errar – mas, com as nossas próprias pernas.


Que não suportávamos que nos impusessem a imutabilidade do mundo.


Até porque trazíamos a certeza de que era possível, sim, mudar o Pará e o Brasil.


Há uns 40 ou 50 anos, se uma negra entrasse num elevador social, ela provavelmente seria escorraçada por algum branco rico, que seria até “festejado” por outros brancos ricos, “por colocá-la em seu devido lugar”.


O menino pobre – e geralmente negro, ou caboclo, ou mulato – só muito raramente conseguia entrar numa universidade, porque não tinha a menor chance ao disputar uma vaga com os meninos oriundos de famílias com maior poder aquisitivo.


Há uns anos, sequer podíamos cogitar a legalização do aborto, apesar das mulheres pobres que morriam – e ainda morrem – aos milhares, em decorrência de abortos clandestinos.


Há uns anos, milhões de pequenos agricultores eram humilhados, espancados e até assassinados impunemente, porque “ousavam” reivindicar um pedaço de terra.


Há uns anos, escravizavam-se trabalhadores, como se fosse “a coisa mais natural do mundo” escravizar trabalhador.


Nossas crianças eram colocadas pra trabalhar em carvoarias, em toda a sorte de trabalhos degradantes, como se não tivessem o direito inalienável à infância e à proteção de todos nós.


Nosso povo era tratado pior que bicho. E condenado à miséria, que era transmitida de geração em geração.


E hoje eu olho pra trás e penso: ainda há, sim, muito a ser feito; ainda é preciso revirar as entranhas deste País, deste Pará, para que todo o nosso povo tenha acesso, de fato, à Cidadania.


Mas quando olho pra trás também vejo o quanto tínhamos razão em dizer: não, o mundo não é imutável. E está em nossas mãos a capacidade de transformar o mundo.



II

Hoje, lembrei-me de tudo isso ao assistir à impugnação da candidatura do deputado Jader Barbalho ao Senado Federal.


Lembrei-me daquele 1982.


Lembrei-me do quanto Jader significou, em termos de esperança, para todos nós que lutávamos pela redemocratização.


Lembrei-me, também, de quando a PM invadiu a Assembléia Legislativa, para bater em manifestantes, e de quando surgiram as primeiras denúncias do escândalo do Banpará.


E confesso que senti enorme melancolia ao recordar tudo isso.


Jader é um político extraordinário, e seria extraordinário em qualquer tempo e em qualquer lugar do mundo.


É inteligente, culto e com uma raríssima capacidade de antever, de se antecipar. 


E se tivesse usado todo esse enorme talento em favor do Pará – um talento que não lhe pertence, aliás, mas, à sociedade que fez de todos nós aquilo que somos – certamente que seríamos um dos estados mais respeitados do Brasil.


Jader seria talvez o nosso Lula, se não tivesse enveredado por caminhos complicados, escuros, tenebrosos. 


Hoje, já discutimos o impensável, há 40 ou 50 anos: a ética na política, a probidade administrativa, a separação entre o público e o privado, a ficha limpa para aqueles que querem ter a honra de nos representar. 


Não vou ser hipócrita a ponto de dizer que Jader se enquadra nesses novos imperativos sociais.


Penso que o velho patriarca, apesar de tão pré-ciente, acabou atropelado por todo esse avanço social que conseguimos conquistar.


Mas também penso que a maneira como se está a tentar afastar Jader da vida política, não é nem justa, nem legal, nem democrática.

III

Ao ouvir a leitura do voto do ministro-relator Versiani, durante o julgamento no TSE, perguntei-me se ele entendia, de fato, o que estava a dizer.


Talvez sem perceber – e eu vou lhe garantir a presunção da inocência – o ministro acabou por defender a implosão de fundamentos do Estado de Direito. 


Ora, o ministro e seus pares condenaram Jader à inelegibilidade, em decorrência de um “crime” – a renúncia ao mandato – que ele teria cometido há quase dez anos, quando inexistia punição para renúncia a mandato, para, supostamente, “escapar à cassação”.


Vocês por acaso já pararam pra pensar o que isso significa?


Isso significa, por exemplo, que eu posso ir parar no pelourinho, caso esse nosso Congresso Nacional alucinado aprove uma lei, com a possibilidade de retroagir uns vinte anos, condenando ao pelourinho quem deixou de pagar uma dívida. Ou quem fumou em ambiente fechado. Ou quem roeu unhas. Ou quem matou e comeu um jabuti.


É isso. Amanhã, alguém vai bater na minha porta e dizer: “Teje presa, porque você, há 20 anos, matou e comeu um jabuti, apesar de, naquele tempo, não ser crime matar e comer um jabuti”.


Mas aí alguém vai argumentar: mas o TSE já disse que inelegibilidade não é condenação; não é punição. Porque a possibilidade de você ser candidato ou não, depende de você cumprir determinadas exigências, no momento em que foi registrar a sua candidatura. 


Tudo bem: eu vou ao TRE, porque quero ser candidata. Apresento todos os documentos que me foram pedidos, e dentro do prazo legal.


Mas aí, dias depois, um funcionário me diz: puxa, doutora, mas é que ontem aprovaram uma Lei exigindo, além de todos esses documentos, que a senhora apresente o seu histórico escolar, de Primeiro Grau, lá de Anajás. 


E eu posso, é claro, pacientemente, comprar litros de repelente e ir a Anajás, buscar esse meu histórico escolar.


Mas aí eu volto ao TRE, a trrremer de malária, e o funcionário me diz: puxa, doutora, mas esse seu documento tá todo escrito à mão. E a lei complementar aprovada anteontem diz que esse seu histórico tem de ser entregue digitalizado.


É claro que lei aprovada durante o processo eleitoral é puro casuísmo.


E é claro que inelegibilidade, é sim, punição: é retirada, é castração de uma parte do direito de Cidadania.


É espécie de ostracismo – só que com outro nome.


Ao sujeito ao qual se retira ou se nega a condição de elegibilidade é retirada a simples possibilidade de apresentar o seu nome à disputa por um mandato eletivo.


É interditado um direito que radica na própria condição de Cidadão.


E essa condição combatida pelo ministro Versiani é que é a verdadeira: somos todos, a princípio, elegíveis.


É claro que a sociedade tem o direito de condenar à inelegibilidade qualquer cidadão.


Podemos estabelecer, através de uma Lei, que o sujeito que foi condenado em última instância, por exemplo, não pode ser candidato.


Quer dizer: podemos retirar tal direito, interditar o acesso a tal direito, a esse ou aquele cidadão, por considerarmos que, pelo fato de ele ter sido condenado em última instância, não pode nos representar.


Mas isso só pode valer a partir do momento em que estabelecermos essa Lei, porque a Lei só vale “pra frente”, e não “pra trás”. E no caso de leis eleitorais, só com um ano de antecedência. 


Porque, do contrário, seria muito fácil à Ana Júlia ou ao Jatene, ou a quem quer que estivesse no poder, mandar o adversário ir buscar um histórico escolar lá em Anajás.


Quem defende o contrário, me perdoem, ou é tão burro que não percebe as conseqüências dessa retroatividade legal, ou não está nem aí para o império da Lei. 


E novamente é burro, porque fora da Lei, pra esses animais predadores que todos somos, queridíssimos, não há salvação.



IV


No caso de Jader, esse processo de inelegibilidade é várias vezes ilegal.


Além de puni-lo por algo que não era crime na época em que renunciou, também o condena por fatos ocorridos há dez anos, cujas circunstâncias eram de simples linchamento.


Ou seja: circunstâncias nas quais inexistiam possibilidade de defesa – a não ser “abjurar”. E acabar cremado do mesmo jeito.


Ora, o que foi que aconteceu há dez anos, naquele embate entre Jader e o baiano Antonio Carlos Magalhães?


O baiano acionou os tentáculos que possuía em toda a imprensa nacional e a vida de Jader – pública e privada – foi submetida a um pente-fino raras vezes visto em todo o Brasil.


Repórteres dos principais veículos de comunicação do Brasil – Veja, Globo, Folha de São Paulo – praticamente “acamparam” em Belém.


Ao final, criou-se um “clamor popular”, como se Jader fosse a “maçã podre” do Congresso, e o baiano ACM uma espécie de “querubim ungido”.


Com isso, Jader fez o que faria qualquer um de nós que não tivesse vocação nem pra Joana D’arc, nem pra Branca Dias: renunciou.


E essa é uma coisa muito complicada na Lei da Ficha Limpa: o sujeito é punido com a inelegibilidade, mesmo sem ter sido provada a sua culpa.


E isso quer dizer que se amanhã tivermos um regime autoritário, bastará abrir processos, até graciosos, contra eventuais adversários, para que eles sejam “legalmente” banidos da vida pública.


Não, não estou a defender o Jader: ele é um sujeito suficientemente poderoso (e não estou a falar apenas no aspecto externo, mas interno: de um sujeito capaz de sobreviver a desertos) para não precisar de alguém como eu, a defendê-lo.


Também não voto nele: voto no Paulo Rocha e no Flexa Ribeiro.


E quero, sim, que ele seja punido, se comprovada a culpa dele, por tudo o que acreditamos que ele fez.


No entanto, penso que Jader – e nem qualquer cidadão – vale o Estado de Direito e a Democracia.


Se a Justiça não funciona, ou é lerda para punir poderosos, que se mude a Justiça: que o controle social intervenha, para fazê-la funcionar.


Mas fazer a Lei retroagir para prejudicar, ou condenar sem o devido processo legal, é inverter o raciocínio.


Nenhum de nós acha certo linchar um cidadão pobre acusado de roubo. 


E se isso vale para o pobre, vale também para o rico: a Lei, o império da Lei, tem de valer para todos, indistintamente.


O que temos de buscar é o fim da impunidade – e não a restrição do direito de defesa ou a simples ilegalidade.


E eu só lamento é que tribunais, como foi o caso do TSE, se curvem a essa coisa de “clamor popular”.


Justiça à base de “clamor popular” não é Justiça: é linchamento.


Justiça e juízes não são candidatos a miss ou a mister simpatia – muito menos podem perfilar com a “galera do polegar pra baixo”.


Tenho esperança de que o Supremo reverta essa decisão, que não é ruim só para o Jader: é horrível pra todos nós.


E se o Supremo não o fizer, que Deus tenha piedade do Brasil.


Porque aí qualquer Hugo Chavez da vida poderá fazer das leis e das instituições brasileiras o que bem entender